O ESPELHO DOS MILAGRES - IVAN PESSOA

 9780226044149

 O ESPELHO DOS MILAGRES

Como posso ter uma identidade sem um espelho?” 
(William Golding, Pincher Martin)

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Por Ivan Pessoa
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§1
O que turva imediatamente em momentos de crise – como se os olhos estivessem prenhes e cegos – é a representação: aqui compreendida como espelho. Em meio à crise, aceitar sem resmungos aquilo que os olhos veem perante o espelho, é a condição primeira para o autoconhecimento, de sorte que refleti-lo implica autoaceitação e contínuo aprimoramento. Neste instante, aquele que aceita a si mesmo face-a-face, capta humildemente uma certeza: ‘-Eu sou isto’. Do mesmo modo, ignorar ou pretender adulterá-lo é empreender distância daquilo que os olhos veem, culpando ou onerando as deficiências da pupila, da retina e do globo ocular pela recepção da imagem refletida. Por não suportar a si mesmo, o que surge perante os olhos são alentadas justificativas: ‘– Não consigo ver a mim mesmo, portanto, tudo ao redor me ofusca, e tem culpa. ‘ Justificar o que os olhos veem como uma deficiência da realidade, aliás, transferindo-lhe culpa, é ceder a um estado de espírito próximo ao corrosivo ressentimento, sintoma de um delírio de personalidade por mim nomeado de: vampiresco. Enquanto a vítima traz consigo tragicamente a dignidade da inocência, o olhar ressentido anuncia impostura, vingança e autocomiseração. Em tal caso, a vítima – cuja expressão é a inocência: o pharmakós das tragédias gregas ou bode expiatório, contrapõe-se ao ressentido, figura vampiresca entre oeiron das tragédias – com sua autodepreciação cínica – e à figura do alazôn das comédias, aqui compreendido como o impostor com paródicas ideias: maliciosas, fixas, incorrigíveis e absolutas. Como um vampiro, tal impostor é como Pândaro de Shakespeare, presente na tragédia ‘Tróilo e Créssida’, que escamoteia a realidade em benefício próprio, à maneira do igualmente vampiresco Barkilphedro do filme expressionista: ‘O homem que ri’ (1928) de Paul Veni.
(Todos aqueles que culpam a realidade por suas deficiências são inequivocamente bem representadas pelo vampirismo ressentido deste personagem, igualmente remissivo ao Pândaro de Shakespeare).
§2
Em momentos de crise, as atribulações se atropelam trôpegas e convulsas, dentre todas – duas se antecipam: a dificuldade de ver a si mesmo, aceitando-se perante um espelho indiferente (como a vítima sem proselitismos) e a inculpação projetada à realidade (o constante ressentimento público, constante na desfaçatez vampiresca). Em um recorrente contexto histórico, ambas as dificuldades se confundem, e eis a crise da representação, que só é solucionável com o recurso à reparação política imanente aos processos sociais, ou àquilo que ajusta os olhos à realidade, aqui compreendido como uma intercessão divina miraculosa.
Como nos faz recordar Plínio, o Velho (o que poderia ser a justificativa para a crueldade do personagem seguinte, bem como a todos que declinam perante o espelho) Nero costumava assistir às sangrentas lutas de gladiadores, aguçado era o seu nível de miopia, interpondo – ao modo de uma lente de contato – uma esmeralda, entre o mundo e os olhos. Esta deficiência, que o ressentia; não apenas lhe custava a apreciação de si mesmo, mas justificava suas sandices e sadismos, de sorte que a esmeralda reparava sua indesejada miopia, trazendo-o à realidade. Patrick Trevor Roper em ‘The world throught blunted sight‘ (1988) sugere algo determinante em relação ao míope Nero, algo que o autor amplia às expressões artísticas modernas: para uma sociedade em crise, cuja representação é fosca desde a imagem especular até as instituições sociais, tudo passa a ser justificado; o que faz do ressentido uma vítima, daí surgindo meios de corrigir violenta e coletivamente tais danos. Da mesma forma é daí que surge o afã esotérico e pagão atribuído por Alain de Besançon (‘A imagem proibida‘) às vanguardas artísticas, justificadas pela dilapidação da beleza e da harmonia, aliás, à democratização dos dons estéticos.
Todo o esforço de ajustar arbitrariamente o homem à realidade incita um senso de reparação. Diferentemente do recato e do silêncio de quem toma para si sua própria imagem, assumindo-a e aprimorando-a com o reflexo do mundo, há determinadas cegueiras que são arrazoadas pelo espírito da ressentida e hedionda correção: votadas não à demorada reflexão interior, mas ao mundo exterior. O que daí surge é a justificativa, ao modo da clássica pergunta de Robespierre que, acometido de um espasmódico problema de visão – o que lhe comprometia a autoaceitação, e antes de ordenar suas atrocidades, perguntava: ‘Em nome de que?’ Por certo, em nome desta cegueira do ressentimento: tudo é permissivamente aceito – desde corpos digladiados; cabeças guilhotinas, até o extremo do sadismo coletivista.
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§3
Para o filósofo Philip Hallie, os desvios oculares de uma sociedade em crise – em momentos de acirrada cegueira pública, em que o indivíduo por não aceitar a si mesmo, transfere a culpa a outrem -, resulta em casos extremos em uma: ‘crueldade institucional’. Em tais termos e decorridos anos de devastada degradação, por excesso de vitimização, o indivíduo tem coletivamente seus anseios reparados, de tal forma que ao tornar-se maioria; impinge aos detratores todo o sofrimento anteriormente acumulado. O que antes fora minoria torna-se maioria, reparando assim toda violência impostada. Em uma sociedade cruel (do latim – crudus: ‘cru’) o ressentido – ao tornar-se vítima – condena à reparação as eventuais adversidades sofridas; passando de cidadão comum a algoz. Deste modo, a indiferença se torna provocadora, afinal o anseio de justiça se empenha em reparar qualquer imperfeição, qualquer desajuste, havendo a partir daí – a necessidade pública de notória e irrestrita atenção, em outras palavras:        ‘- Vejam-me, eu sou a vítima exitosa do mundo, e por isto: vingo minha condição anterior!’ Em um caso similarmente anedótico, um dia o autor de ‘Ubu Rei’, Alfred Jarry, empenhado em chamar a atenção de uma garota, tão linda quanto indiferente, na sala de espera de um consultório médico, e não sabendo como abordá-la, sacou seu revólver e disparou contra o espelho. Voltando-se para ela, justificadamente assustada, falou: “Mademoiselle, agora que quebramos la glace (misto entre gelo e espelho) gostaria de te conhecer (…).” Por não aceitar a impassível ordem da realidade, o ressentido tende naturalmente para o gesto de Alfred Jarry, vitimizando-se até o extremo da crueldade justificada: ‘o silêncio e a indiferença mobilizam revoltas, e guilhotinam cabeças.
§4
Eric Voegelin em: ‘A nova ciência da política’ nos faz perceber que o melhor meio para se compreender uma sociedade é recorrer ao caráter simbólico da expressão de sua própria imagem, desde o indivíduo até as instituições, aliás: “a partir do rico conjunto de autorrepresentações.” Portanto, determinar quem é o bode da expiação, o pharmakós sacrificial da tragédia pública é destacar simbolicamente a insurgência coletiva de seu carrasco, no mais das vezes, um impostor anteriormente expiado. Deste modo, se projetássemos as exigências político-ideológicas atuais, veríamos o processo civilizacional entre vítimas e ressentidos, cujo risco é sempre a queda em uma ‘crueldade institucional’, por meio da qual – o ressentimento se vitimiza imolando seus opositores.
Justificar-se por meio de uma miopia; emendá-la com porquês; quebrar la glace – são atestados de uma crise de autorrepresentação por onde a imagem humana cede aos estilhaços de uma crudelíssima monstruosidade que, perante tudo, se justifica. Desde a carne até o espírito, a crueldade cega os olhos e anula a realidade, à maneira do conto – ‘A rainha da neve‘ de Andersen, em que o espelho da representação – distorcia a imagem projetada, de modo que: “a mais bela paisagem nele refletida (…) e as melhores pessoas se tornavam horríveis, ficavam de cabeça para baixo e sem os corpos.” Ora, quem distorce o espelho: os olhos ou a realidade? Confundi-los ou implicá-los é tanto o estado da crise de representação, quanto o êxito público do ressentimento, com o qual alguém justificadamente se antecipa: ‘– quem distorce o espelho é a própria realidade. ‘ Ainda que em meio a uma sociedade distorcida, fosca como no espelho de Andersen, ser vítima é ter consciência de um poder impessoal que tende a equilibrar e reparar naturalmente a ordem, algo que naquele conto – o autor considera como um milagre, proveniente de um fenômeno miraculoso: “agora, pela primeira vez, diziam, era possível ver como realmente eram o mundo e a humanidade“. Quanto a este equilíbrio – ao modo de um milagre, os gregos chamavam-no de: ‘némesis‘, processo de reparação sobrenatural, representada pela Justiça Divina.
§5
Passadas todas essas questões, como responder à alegórica inquietude do protagonista da novela de William Golding, Pincher Martin, que poderia ser a pergunta mais intrigante em período de crise: “Como posso ter uma identidade sem um espelho?”. Quanto a isto, não hesito em responder: apenas por meio de um milagre, aquele que reflete e enobrece a vítima que comicamente somos.
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Fonte:https://apalavradescoberta.wordpress.com/2015/10/22/o-espelho-dos-milagres/

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